Audiência pública do MPE transformada em culto religioso é alvo de críticas
Segunda-feira, 29 de Maio de 2017 - 06:01 | Redação
Depois de receber críticas de diversos deputados estaduais, agora foi a vez do grupo “Juristas pela Democracia” se manifestar contra a atuação de representantes do Ministério Público Estadual na convocação obrigatória de pais de alunos para a audiência pública realizada na noite da última quinta-feira no Estádio Douradão, em Dourados. Em uma carta pública, o grupo repudia o comportamento de membros do MPE.
A audiência pública aconteceu no dia 25 de maio e foi convocada pela procurador de Justiça Sérgio Harfouche para abordar assuntos relacionados à educação de jovens e adolescentes e ainda para que ele fizesse a defesa do programa que obriga estudantes envolvidos em atos de vandalismo a reparar danos nas escolas. No entanto, a audiência mais pareceu um culto evangélico do que propriamente a abordagem técnica sobre o tema inicialmente proposto.
Famílias e responsáveis por alunos da rede pública de ensino de Dourados foram convocados pela promotora de Justiça da Infância e da Juventude Fabrícia Barbosa Lima a participar do evento. Em caso de falta injustificada, continha previsão de aplicação multa de até 20 salários mínimos.
Formado por advogados, juízes, promotores, defensores e professores de direito de Mato Grosso do Sul, o grupo exige “investigação e enérgica atuação das autoridades responsáveis pela audiência que atentou contra a democracia e os princípios constitucionais”.
Um dos membros do grupo, o professor da Faculdade de Direito da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) Tiago Resende Botelho, afirmou que a audiência Pública convocada pelo MPE não permitia a ausência voluntária dos pais, o que violou o próprio espírito de participação social que move uma audiência dessa natureza.
Por sua vez, o procurador Sérgio Harfouche explicou que a convocação tem previsão legal, mas que foi feita pelo Ministério Público de Dourados e ele só foi convidado como palestrante.
O projeto de lei sobre a "Lei Harfouche", apresentado pelo deputado Lídio Lopes (PEN) na Assembleia Legislativa, já foi aprovado em primeira votação e aguarda parecer das comissões permanentes para ser apreciado de forma definitiva, em plenário.
Após a polêmica em Dourados, o projeto perdeu força entre os deputados, que inclusive assinaram uma moção de repúdio, contra a convocação obrigatória dos pais para participar do evento. Antes, apenas a bancada do PT se manifestava contra a matéria, mas agora a proposta pode não ter maioria dos votos para ser aprovada.
LEIA A CARTA ABERTA, NA ÍNTEGRA:
JURISTAS PELA DEMOCRACIA DE MATO GROSSO DO SUL REPUDIAM ATUAÇÃO DE REPRESENTANTES DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL PELA CONVOCAÇÃO OBRIGATÓRIA E CONTEÚDO ABORDADO EM “AUDIÊNCIA PÚBLICA” COM PAIS, MÃES E/OU RESPONSÁVEIS DA REDE PÚBLICA DE ENSINO DE DOURADOS
Juristas pela democracia de Mato Grosso do Sul, grupo formado por advogados, juízes, promotores, defensores, professores e graduados e graduandos do direito, repudiam enfaticamente os fatos mencionados abaixo e exigem investigações e enérgica atuação das autoridades públicas responsáveis.
Famílias e responsáveis de alunos da rede pública de ensino de Dourados foram convocados, por representantes do Ministério Público Estadual (MPE), para comparecem à “audiência pública” na noite do dia 25/5/2017 no Estádio Douradão para abordarem assuntos relacionados à educação dos filhos, da implantação do Programa de conciliação para prevenir a evasão e a violência escolar (PROCEVE), e assistirem à palestra proferida pelo Procurador de Justiça Sérgio Fernando Harfouche.
A convocação da Promotora de Justiça da Infância e da Juventude Fabrícia Barbosa Lima, em caso de falta injustificada, continha previsão de aplicação multa de até 20 salários mínimos (R$ 18.740,00) e eventual cometimento do crime de abandono intelectual (artigo 246 do CP).
Na dita audiência pública, Harfouche declarou-se contra a “ideologia de gênero” e afirmou que professores não devem “se meter na identidade do filho”. No ato convocado com as logomarcas do Governo do Estado e do MPE, declarou ser necessário “[...] acertar minha situação do pecado com Deus. Eu quero colocar nossas vidas diante de Deus. Lá na cruz. [...] Meu Deus, eu sou um pecador, mas o senhor me ama. Entregou Jesus teu filho no meu lugar. [...] Eu recebo Jesus cristo como meu senhor, meu salvador. Eu te entrego minha casa. Eu te entrego a escola dos meus filhos, os professores, os funcionários, gestores, as autoridades desta cidade. Eu te entrego minha rua. Eu te entrego esta cidade. Fica fora de Dourados toda maldade, toda rebelião, toda incredulidade, toda bruxaria. Fica fora, feitiçaria. Fora desta cidade, a idolatria. Derramamento de sangue. Uso de drogas. Indisciplina. Infrações. E tudo que não for teu, meu Deus, vai para fora de Dourados. Toma esta cidade, porque nesta noite nós declaramos solenemente que Jesus Cristo é o senhor de Dourados e vai governar Dourados como príncipe da paz. Em nome de jesus. Amém? Glória Deus!”
Os fatos parecem ameaçar gravemente a laicidade do Estado e o direito fundamental à liberdade de crença consagradas nos artigos 5º, inciso VI e artigo 19, inciso I, ambos da Constituição. Além de potencialmente ameaçar pilares do Estado moderno os fatos parecem desafiar a Lei Federal nº 4898/65, que estipula em seu artigo 3º, alínea “e”, constituir abuso de autoridade o desrespeito ao livre exercício de culto religioso, o que, muito provavelmente, é ferido quando pessoas são coagidas a participarem de pregação religiosa, sob o pretexto de tratarem da educação dos filhos.
Da mesma forma, os fatos aproximam-se perigosamente do constrangimento ilegal de pais, mães ou responsáveis legais (Artigo 146 do Código Penal), que parecem terem sido ameaçados a participarem de armadilha religiosa dissimulada sob as vestes de audiência pública.
Não há lei que permita que representantes do MPE constranjam famílias à participarem de supostas audiências públicas, especialmente sob ameaça de multa de até 20 salários mínimos e, inclusive, crime de abandono intelectual. O cumprimento dos deveres do poder familiar, dentre os quais, naturalmente, o de dirigir a educação dos filhos, tampouco se verifica em ausência a evento do Ministério Público. A ameaça constante da convocação repudiada não tem lastro no artigo 249 do ECA.
A referência ao crime de abandono intelectual (artigo 246 do CP) é escandalosa. Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar em nada se assemelha a não comparecer à palestra de conteúdo altamente duvidoso, supersticioso e ideologicamente carregado promovida por representantes do MPE.
Na palestra Harfouche criticou professores que usam a categoria de gênero para explicarem as desigualdades sociais existentes entre os sexos, identidade de gênero e orientação sexual. Chegou ao extremo de afirmar que: “Eu ponho o filho na escola para aprender a ler, escrever, fazer conta e pensar, não é para discutir a identidade dele não. [...] Eu estou falando identidade de gênero, é se meter na identidade do filho.” Além de revelar seu desconhecimento sobre categoria amplamente pesquisada nas ciências sociais e humanas, o Procurador promove cruzada ideológica ao equacionar o uso da categoria gênero com falaciosa tentativa de doutrinar crianças a serem heterossexuais, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersex. E ainda mais grave! Contrapõe pais, mães e/ou responsáveis contra professores que cumprem a Lei; uma vez que ensinar gênero é dever conforme Lei Federal nº 11.340/06 e decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Maria da Penha.
A própria menção a ambiente escolar livre de ideologias revela importantes limitações daqueles que convocaram a audiência pública. A Constituição Federal no art. 206 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação no art. 3º, incisos II e III, garantem ao professor o direito de lecionar com base nos princípios da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a arte e o saber, bem como pelo pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. É inaceitável que funcionários públicos que devem zelar pelo cumprimento da Constituição e das Leis atuem, aparentemente por convicções religiosas e ideológicas, contra o próprio ordenamento jurídico. O MPE não tem autorização legal, nem capacidade técnica para pretender censurar docentes.
Os fatos são gravíssimos e devem ser exemplarmente investigados pelas autoridades públicas competentes. São fortes os indícios de cometimento de faltas funcionais por vários servidores públicos, devendo estas serem investigadas, com garantia também constitucional do devido processo legal, e, se for o caso, punidas com o rigor que o caso e a lei impõe.
Mato Grosso do Sul, 26 de maio de 2017
Juristas pela Democracia de Mato Grosso do Sul